Sentados em círculos, centenas de índios xavantes pintados de vermelho observam o banquete reunido no chão. Mal amanhecia o dia, mas todos passaram as últimas 12 horas de pé, dançando e cantando, na festa que encerrava um ritual sagrado que só ocorre a cada 15 anos.
É hora de repor a energia, mas no banquete quase nada remete à dieta tradicional indígena. Há vários pacotes de pão de forma, farinha de trigo, bisnagas, bolos de caixinha e muito refrigerante.
Famosos pela grande força física e pela veia guerreira, os xavantes estão sucumbindo diante de uma doença silenciosa: o diabetes.
A epidemia é resultado dessa alteração drástica na alimentação dos indígenas, que abandonaram comidas tradicionais, como batata-doce, abóbora e mandioca.
O maior vilão, porém, é a “ödzeire”, ou “água doce”, na língua xavante. O refrigerante virou um vício.
A preferência é pela Coca-Cola, mas o preço inibe a compra. Por isso, recorrem a marcas mais baratas.
Estudo do endocrinologista João Paulo Botelho Vieira Filho, professor adjunto da Escola Paulista de Medicina, aponta que, em duas das principais terras xavantes, Sangradouro e São Marcos, a prevalência de diabetes é de 28,2%. Na população em geral, é 7%.
Metade dos mais de 4.000 indígenas que vivem nessas duas terras estão obesos.
“Nossa força quase não existe mais como antes”, diz o cacique Domingos Mahoro, 58, cuja mulher morreu de diabetes há um mês.
Genética
Quando os xavantes chegaram à aldeia de Sangradouro, no município de General Carneiro (MT), em 1957, eram delgados, magros e fortes.
Originalmente nômades, as primeiras referências aos xavantes remetem ao século 18, na então província de Goiás.
Vieira Filho visita as aldeias anualmente desde 1976. Ainda naquela década, a Funai criou o “Projeto Arroz” para reverter a escassez de alimentos. O arroz integral da roça foi deixado de lado.
“Após o projeto, os índios foram abandonando as roças. E abandonaram o seu cardápio tradicional, que incluía gafanhotos assados, formigas e larvas, ricos em proteínas”, conta o endocrinologista.
Entre os anos 1980 e 1990, chegou o refrigerante. Nos anos 2000, o governo enviava cestas básicas com goiabada, açúcar, macarrão, farinha.
Isso causou um desequilíbrio no organismo dos xavantes. Segundo Vieira Filho, são propensos à obesidade e ao diabetes pois desenvolveram um mecanismo genético que retém energia, vital para tempos de escassez alimentar.
Aposentadorias e o Bolsa Família facilitaram o acesso à cidade mais próxima, a 50 km de Sangradouro, e sua variedade de comida industrial.
Monitoramento
Com uma prancheta, o técnico em enfermagem Constâncio Ubuhu, 39, caminha pelas aldeias anotando os índices de glicemia. Ao lado de cada nome, o número: 200, 300, 400, até 600 mg/dl. O índice normal é considerado abaixo de 100 mg/dl.
Rosalia Ro’odzano, 52, teve a perna amputada. “Eu desmaiava, tinha crises, dores. Comia mesmo muito doce, refrigerante. Percebi como vivia, e mudei. Mas meus filhos comem de tudo.”
Angélica Wautomorewe, 60, tinha uma sede irresistível. Um dia, acordou em uma UTI -ficara um mês em coma. “Eu tomava refrigerante todos os dias”, diz. Ela diminuiu o açúcar e baixou a glicemia. Mas prefere as ervas naturais à insulina.
O problema dos indígenas é o mesmo dos brancos: a tentação. “O refrigerante é uma novidade que veio do céu, é um artificial tão gostoso”, diz Paulo Rawe, 51, há dois anos com diabetes.
A estrutura escassa também dificulta a prevenção. O posto de saúde da aldeia principal está fechado há anos. Nas casas simples de alvenaria, feitas ao estilo tradicional, há geladeira e TV, mas não há banheiro nem água corrente.
As crianças sofrem com o descontrole nutricional. Os bebês nascem com mais de cinco quilos, muitas vezes com deficiências físicas, como lábio leporino e sem orelhas. Abortos e diabetes em adolescentes também são comuns.
Segundo Vieira Filho, a solução é voltar à alimentação tradicional e adquirir novos hábitos. Algumas roças, diz, já são replantadas. E cortar radicalmente o refrigerante.
A esperança depositada nos mais jovens é grande, mas não são poucos os pais que continuam a alimentar os filhos com a bebida doce que, segundo alguns indígenas, “derrete a língua”.
Por: Lucas Reis
Fonte: Folha de São Paulo